17.2.14

Do novo dia


"O novo dia está quase a chegar, mas o antigo arrasta ainda os seus pesados contornos. Tal como a água do mar e a água do rio medem forças na foz do rio, o velho tempo e o novo tempo lutam e misturam-se. Takahashi não sabe dizer ao certo de que lado do mundo se situa o seu centro de gravidade.
(...) O nosso olhar afasta-se do coração da cidade e desloca-se em direcção aos subúrbios, até uma zona residencial calma. Lá em baixo, alinham-se casinhas de dois andares com jardim. Vistas de cima, todas essas casas parecem iguais. Mesmo rendimento anual, mesma estrutura familiar. Um Volvo azul-marinho reflecte orgulhosamente o brilho matinal. Os jornais da manhã acabaram de ser distribuídos. Os habitantes do bairro passeiam os seus grandes cães. Através das janelas, ouve-se o barulho típico dos pequenos-almoços a serem preparados. Vozes que se interpelam. Também aqui, um novo dia está prestes a começar. Poderá ser um dia igual aos outros, ou, então, em muitos aspectos, um dia excepcional, digno de ficar na memória. Em todo o caso, naquele preciso momento, e para a maioria das pessoas, é uma folha de papel em branco sobre a qual ainda nada foi escrito.
(...) Lá fora o dia torna-se rapidamente cada vez mais claro. Raios de luz nova infiltram-se no quarto por entre os intervalos dos estores. A velha temporalidade perde a sua vitalidade e recua, começando a desaparecer. Muito boa gente continua a murmurar as velhas palavras, mas, à claridade do Sol acabado de romper, o significado das palavras muda a uma velocidade espantosa, e renova-se. Mesmo imaginando que os novos significados são, no essencial, coisas temporárias que duram apenas até à hora do crepúsculo desse mesmo dia, a verdade é que vamos partilhar esse tempo, fazer juntos esse percurso."

(Haruki Murakami, in After dark - Os passageiros da noite)


Boa semana!


::: photo by nikoliner

1 comment:

Anne said...

pretty!