"Dia sim, dia sim, cumprirmos os mesmos rituais, executarmos os mesmos gestos, aprisionados numa ideia de nós, conscientes de que qualquer desvio é notado, que, ao mais pequeno sinal de diferença daquilo que fomos ontem, anteontem, no dia anterior a esse, para aquilo que somos hoje, alguém reparará, nos fará ver que já não somos os mesmos, que alguma coisa mudou. Como se existisse uma ideia daquilo que somos, porventura com pequenas variantes, e fosse inadmissível que nos desviássemos dela. Neste sentido, a rotina representa essa ideia, enquanto a memória representa a excepção, uma vez que conserva, porfiando, os momentos em que nos atrevemos a ser outra coisa qualquer. Talvez o exercício mais proveitoso não seja relembrar os acontecimentos extraordinários, mas precisamente o contrário; relembrar o que aconteceu sempre (ou quase sempre), recordar a rotina e como nos sentimos ao vivê-la, resgatar o aborrecimento infindável dos dias para que possamos tê-los, plenamente, nas nossas mãos. Recebemos o tédio com a mesma disponibilidade com que recebemos a excepção, para que finalmente possamos reconciliar as duas coisas, a regra e a fuga, aquilo que julgamos ser e aquilo que também somos."
(João Tordo, in O Deslumbre de Cecilia Fluss)
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